Ligado ao Instituto de Computação da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) desde 2008 e um dos fundadores do Núcleo de Excelência em Tecnologias Sociais (NEES), o professor e pesquisador Ig Ibert Bittencourt se tornou referência no debate sobre a relação entre educação e tecnologia.
Segundo ele, relatórios apontam que, em dez anos, 65% das profissões que conhecemos serão impactadas por inteligências artificiais, o que vai provocar uma mudança de paradigma em nossa sociedade.
Atualmente Ig faz pós-doutoramento na Escola de Educação da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, onde desenvolve uma série de pesquisas que buscam solucionar problemas reais.
Em entrevista exclusiva concedida ao jornalista Eduardo Almeida, para a revista Saber Ufal (edição n. 5), Ig fala sobre sua trajetória acadêmica; as diferenças culturais entre Estados Unidos e Brasil; e analisa as mudanças na educação, em especial os impactos provocados pela tecnologia. Ele também defende a criação de meios que reduzam as desigualdades entre os estudantes.
Eduardo Almeida: Como foi sua trajetória acadêmica até chegar em Harvard?
Ig Ibert Bittencourt: Esse é um longo percurso. O nosso grupo de pesquisa vem trabalhando com informática na educação há mais de 20 anos. A gente não só faz pesquisa básica, mas tenta, de alguma forma, impactar a sociedade. E temos resultados interessantes, como a plataforma Meu Tutor, que chegou a 300 mil estudantes. Desde 2016, trabalhamos com o Ministério da Educação em várias políticas e, a partir de então, temos mostrado como a pesquisa que a gente desenvolve tem chegado a milhões de alunos, milhares de escolas e milhares de municípios pelo Brasil. A gente viu que seria importante estar em uma universidade de renome para aprender mais, construir redes de relacionamento, trocar experiências de alguma forma e contribuir mais com o Brasil. E foi por essa razão que eu parti para o ‘pós-doc’ na Universidade de Harvard, na Escola de Educação. Não fui para a Escola de Engenharia, que trabalha com tecnologia de forma mais intensa, fui para uma Escola de Educação para entender como pensar em uma educação para o século 21 e contribuir inevitavelmente com o Brasil.
EA: Quais as diferenças entre a cultura educacional americana e a brasileira?
IIB: Falando de ensino superior, posso destacar alguns pontos. Estou tendo a oportunidade, em Harvard, de atuar como professor e como aluno. Está sendo ótima essa experiência. Eu tenho essas duas vivências. Como professor, a gente vê a preocupação com os alunos, em pensar no tempo adequado, que não gere uma sobrecarga, considerando o conjunto de disciplinas. Outra coisa que me chama a atenção é que existem assistentes que dão suporte ao professor. Se a aula é mais expositiva, a sala é preparada de uma forma. Se vai haver dinâmica de grupo, a sala é pensada de outra. A arquitetura da sala é pensada por aula. E o assistente do professor prepara o ambiente para que, quando ele chegue, tudo esteja adequado. Também é muito estimulado o debate, a troca de ideias, o respeito a opiniões contraditórias. Há uma preocupação muito grande na construção de ideias. No Brasil, a gente trabalha numa perspectiva muito expositiva. Lá, há essa troca mais rica. E uma das coisas mais importantes: os relacionamentos, as trocas, o informal. No Brasil, a gente tem a percepção de que muito se deve a um momento formal, em sala de aula. Mas a gente esquece que a universidade é para viver, não necessariamente para estudar. A gente precisa viver a universidade. E essa troca faz muita diferença, conecta pessoas e faz com que se tenha a oportunidade de aprender e de entender diferentes visões.
EA: O que a Ufal e o estado de Alagoas podem esperar do professor Ig que retornará de Harvard?
IIB: Diria que um Ig mais conectado, o que é importante para construir relacionamentos na universidade; mais preparado e consciente de como tornar a minha prática de professor mais efetiva; e com uma pesquisa mais robusta. De alguma forma, a gente já consegue fazer uma boa pesquisa, mas agora começa a criar outras redes que podem impactar não só no Brasil, mas fora. Por exemplo, a gente está discutindo com um parceiro no México a possibilidade de rodar pilotos lá. A mesma coisa na África. Então, estamos expandindo os trabalhos que temos desenvolvido. Essa expansão vai ajudar a posicionar a Ufal com maior relevância internacional, porque essa rede que a gente está construindo vai permitir que, quando a gente consiga impactar mais pessoas, eleve o nome da Ufal, contribuindo para o Brasil e para fora do Brasil.
EA: O senhor tem sua formação ligada à área de tecnologia. Como a tecnologia vem impactando a educação ao longo dos últimos anos?
IIB: A tecnologia hoje permeia todas as áreas inevitavelmente. A pandemia veio para mostrar como a tecnologia é fundamental. Mas a educação é mais conservadora que muitas igrejas. Você vê um projeto de transformação digital muito mais robusto em religiões do que na educação. É inacreditável. Um desafio que nós temos é trabalhar a transformação digital. A minha pesquisa surge nesse contexto. A minha pesquisa pensa o uso da tecnologia para lidar com desafios educacionais, de forma que melhore a qualidade, mas que seja mais equitativa. Estudo muito como essas tecnologias estão proporcionando aprendizagem e oportunidades de aprendizagem independente de gênero, raça, etnia e orientação sexual. A minha tecnologia tenta mitigar ou reduzir ou dar luz a essas desigualdades. Outro tipo de pesquisa que, com Harvard, ficou muito mais forte foi como a tecnologia pode ser um mecanismo de promoção de oportunidade e equidade do que de desigualdades. A minha pesquisa hoje busca pensar o uso de tecnologias em locais que não têm a infraestrutura adequada, que é a maioria dos países do sul global. A gente tem uma desigualdade muito grande em termos de acesso à internet, competências digitais desenvolvidas no Brasil. Então, como a gente pode usar a tecnologia para promover a equidade, se as barreiras já geram a desigualdade? A minha pesquisa busca furar essa bolha.
EA: Como a inteligência artificial vai poder ser utilizada a favor da educação e dos menos favorecidos?
IIB: Estou indo para o Japão, para apresentar e buscar liderar essa agenda no mundo. Estamos chamando de Ano Educação Desplugada. É uma IA que chega a quem tem limitação de recursos. Por exemplo, o desenvolvimento da habilidade de escrita em estudantes. Como a gente pode trabalhar manuscritos, com quem não tem computador? Não podemos esperar ter computador para todo mundo, porque não é a realidade. Não dá para esperar formar professores que aprendam a utilizar a tecnologia para trabalhar com os alunos. Já haverá desigualdade aí. Tentamos entender a realidade, com uma escola que não tem internet, que não tem computadores, mas, se nessa escola tem uma pessoa com dispositivo móvel e essa pessoa sabe tirar foto, essa pessoa tem tudo o que a gente precisa para trabalhar com tecnologia e com IA. Foi o que a gente fez em um dos projetos, onde a gente desenvolveu uma solução com inteligência artificial para avaliar as competências com escrita de crianças da educação básica. E essa tecnologia já fez mais de dois milhões de digitalizações, com mais de meio milhão de estudantes de todo o Brasil, sete mil escolas, mais de 1.300 municípios. O aluno escreve, o professor tira foto do texto, essa foto é enviada para as nuvens, processada, e é dado um feedback, uma avaliação da produção textual do aluno e o professor olhando aquilo dali vai trabalhar diretamente com os alunos. Essa tecnologia está com praticamente todo mundo desplugado da internet.
EA: A inteligência artificial vai acabar com profissões e fechar postos de trabalho ou vai ser usada em benefício da sociedade?
IIB: Esse é um tema que está muito em debate. O que eu lhe digo é que os relatórios mostram que inteligências artificiais, como o Chat GPT, vão estar presentes em 65% das profissões nos próximos 10 anos. E muitas profissões que demandam trabalhos mais manuais, com processos cognitivos mais simples, a IA vai resolver melhor. Mas o mundo é mais complexo que isso. As profissões, inevitavelmente, vão ser permeadas por tecnologias com inteligência artificial. A grande diferença está no fato desses profissionais não se limitarem a tarefas consideradas não complexas.
EA: As universidades no Brasil estão preparadas para esse cenário?
IIB: Não. A universidade no Brasil não está preparada para esse cenário. Na minha opinião, as universidades são muito teóricas e ainda estão muito desconectadas do que tem ocorrido de tendências. São muito disciplinares. Se você for olhar o currículo dos cursos de qualquer universidade, procure saber o que tem na grade sobre novas tecnologias ou IA e você não encontra. A universidade brasileira não está preparada para esse movimento global, por ser muito teórica, ter pouca interface com a inovação e ser muito disciplinar.
EA: Como o senhor imagina o futuro da educação no Brasil e no mundo?
IIB: Olhando o relatório da Unesco que pensa até 2050 e os objetivos de desenvolvimento sustentáveis [ODS], eu diria que o mundo vai continuar buscando trabalhar e resolver os mesmos problemas que a gente tenta há 70 anos ou 100 anos, que são habilidades e competências básicas e redução de desigualdades. Como eu vejo o futuro da educação? Igual. Se a gente for pensar no Seymour Papert, que fala assim: pega um professor do século 19 e pega um médico do século 19. Se você trouxer um médico do século 19 para cá [século 21], ele provavelmente vai matar o paciente. Agora pega o professor, ele não vai ter dificuldade. Na educação, não consigo enxergar uma real transformação no que está sendo posto. Não consigo enxergar como isso vai mudar o mundo. Não consigo enxergar nada mais resiliente do que a desigualdade. Na minha opinião, a educação tende a não ter nenhum tipo de mudança e a única forma que a gente pode tentar evitar isso é pensar como resolver lidar os problemas de forma diferente. A gente tende a pensar em tecnologia que precisa de tecnologia. E isso só vai ser um novo mecanismo de desigualdade. Se a gente não pensar em lidar com os problemas de forma diferente, a gente sempre vai ter a desigualdade resiliente.