Gabriela Perroni
Estamos vivendo a revolução da inteligência artificial, uma era de avanços que têm potencial para transformar a educação. No entanto, para que os benefícios dessa nova tecnologia cheguem a todos no Brasil, ainda há um enorme obstáculo: o acesso à internet. Em um país com dimensões continentais, não é raro encontrar locais com realidades desafiadoras.
Para combater essa dificuldade, pesquisadores do Núcleo de Excelência em Tecnologias Sociais (NEES) desenvolveram o conceito de AI Unplugged, que pode ser traduzido como Inteligência Artificial Desplugada ou Desconectada. O conceito pode ser aplicado em diferentes recursos educacionais, permitindo que estudantes e professores de lugares remotos como os da cidade de Cametá, no interior do Pará, na região Norte, sejam favorecidos pela tecnologia, independentemente da infraestrutura e da falta de conectividade.
Um recurso criado nessa linha e que já está em fase de implementação permite monitorar fatores que indicam risco de abandono e evasão escolar, para que os gestores possam agir antecipadamente a fim de manter os estudantes na escola. Esse é o Sistema de Alerta Preventivo (SAP). Ferramentas similares já são utilizadas em muitos países, com eficácia comprovada. As novidades criadas no NEES são a personalização para a realidade brasileira e a possibilidade de inserir dados sem depender da internet, garantindo maior cobertura da solução.
EVASÃO E PANDEMIA
A evasão escolar se tornou nos últimos anos talvez o maior desafio educacional no mundo. A pandemia de covid-19 causou um impacto desastroso nas trajetórias educativas ainda difícil de mensurar. Segundo levantamento recente do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), cerca de 2 milhões de estudantes de 11 a 19 anos estão fora do sistema escolar brasileiro, e na América Latina o cenário não é tão mais promissor.
Além dos estudantes que já estão fora do sistema, outros tantos ainda se encontram em risco, mesmo que invisíveis. O Sistema de Alerta Preventivo (SAP) visa antecipar a identificação de estudantes em risco usando parâmetros para além dos já clássicos fatores como ausência, comportamento indesejado e baixo rendimento.
O estudo contou com a participação de mais de 70 pesquisadores de diferentes universidades. Começou com o desenvolvimento de um questionário de coleta denominado Instrumento de Avaliação de Fatores Relacionais de Risco à Evasão Escolar (IAFREE), com perguntas que permitem monitorar esses fatores.
“Nossa equipe identificou que aspectos relacionais, tais como reprovações, questões familiares, socioeconômicas, condições da escola e falta de sentido na aprendizagem constituem fatores de risco à evasão escolar. Esses fatores foram levantados inicialmente por meio da literatura, mas foram validados e ajustados para a realidade brasileira após protótipo aplicado em mais de 16 mil estudantes da rede nacional de educação no Brasil”, relata a professora Angelina Nunes de Vasconcelos, uma das que participou da pesquisa. O instrumento foi publicado no periódico Frontiers in Psychology, que pode ser conferido clicando aqui.
ACOMPANHAMENTO INDIVIDUAL
O aplicativo permite que os professores apliquem questionários em formato digital ou físico e capturem as respostas por meio de câmera, sem necessidade de conexão à internet em tempo real. Com dados inseridos na plataforma, o sistema passa a acompanhar esses fatores e calcular o risco para cada estudante individualmente. Com base nesses dados, gestores e educadores podem tomar medidas específicas para promover a permanência dos estudantes na escola.
Para garantir que as ações certas sejam realizadas, a pesquisa também incluiu a criação de um protocolo de Escuta Ativa, com um roteiro que orienta os agentes escolares a tomarem medidas de prevenção, personalizadas de acordo com o caso de cada estudante.
“Essas soluções tecnológicas representam um avanço significativo no campo da prevenção da evasão escolar, proporcionando aos gestores e equipes pedagógicas informações precisas e atualizadas para a implementação de estratégias eficazes”, destaca o professor Thiago Cordeiro, coordenador do projeto.
INTERAÇÃO COM A FAMÍLIA
A pesquisa piloto que permitiu validar essa ferramenta foi realizada em três escolas municipais de Cametá, entre junho e setembro de 2022, com turmas do ensino fundamental. A ação contou com a colaboração de toda a rede de ensino, incluindo secretário, diretores e alunos voluntários da Universidade Federal do Pará (UFPA).
No total, 58 questionários foram respondidos pelos estudantes e pelos docentes dessas unidades de ensino. Posteriormente, o instrumento foi validado em uma ação nacional, que reuniu dados de uma amostra de aproximadamente 16 mil estudantes da rede nacional dos ensinos fundamental e médio.
Os levantamentos abordaram cinco dimensões que descrevem diferentes aspectos que influenciam a decisão dos estudantes de abandonar a escola, como as interações do aluno com a escola, o relacionamento com os profissionais educacionais, a influência da família, a dinâmica da comunidade em que o estudante está inserido e até mesmo questões emocionais e psicológicas.
“Nessas unidades de ensino de Cametá, o estudo apontou que a interação do estudante e sua família foi o fator de maior risco para a evasão escolar. Os resultados da pesquisa já foram apresentados aos gestores das escolas participantes, e as próximas etapas incluem a implementação de ações de intervenção com base nos riscos identificados”, explica Angelina Vasconcelos.
“Esses resultados, porém, não visam culpabilizar indivíduos, mas sim entender de que maneira aspectos relacionais nos ajudam a predizer e atuar sobre a evasão de maneira mais complexa e completa, para que estudantes possam ter sua trajetória educacional protegida”, complementa a pesquisadora.
FUTURO
A coleta nacional de mais de 16 mil respostas ainda está sendo analisada. A próxima etapa do projeto inclui a divulgação de como esses fatores impactam a rede nacional, trazendo informações para o Ministério da Educação (MEC) e para os gestores escolares. Novos ciclos de coleta serão realizados. Posteriormente a ideia é que se tornem rotina nas escolas.
“Esse é um dos módulos de uma plataforma ainda mais ampla, que além de monitorar riscos de evasão e abandono, também oferece tecnologia para correção de textos e acompanhamento personalizado da aprendizagem, além de um sistema para registro de frequência escolar”, enfatiza o gerente do projeto, André Lima.
“Com essa abordagem tecnológica inovadora, espera-se contribuir para a promoção de uma educação mais inclusiva e igualitária para todos os estudantes, independentemente das suas circunstâncias socioeconômicas”, observa o pesquisador do NEES.